sexta-feira, 1 de março de 2019

XI


 O Daniel insistiu:

- O narrador continua: “Certo dia, a Leonor estava a atravessar a passadeira, quando saía da escola, e foi atropelada. A sua vida mudou para sempre Era boa aluna, tinha amigos e era alegre. Durante as férias costumava visitar os avós que viviam no Alentejo. No dia do acidente descobriu-se que o condutor não respeitou as regras da velocidade. O que importa é que a vida da Leonor mudou para sempre.

Rapidamente a noite chegou, era hora de arrumar a trouxa e de regressar a casa. Já com um pé na rua, havia um aroma que perfumava o caminho, os candeeiros derramavam a luz na calçada. Alguns casais seguiam em passo apressado. Ainda faltavam dez minutos para o autocarro chegar. Sentei-me na paragem. Ali podia ver o movimento dos taxistas a levar e a trazer os clientes. Era sábado e o movimento denunciava…


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

X


Decidimos trabalhar no quarto, sentados no chão, ao redor da cama, onde retomámos a leitura do texto da sessão anterior, na fala da Árvore.

            - Essa ideia de pôr a árvore a falar é muito interessante – disse o Daniel. Acho mesmo que uma árvore tem muito a dizer.
            - Pelo menos a nossa – retorquiu a Bruna.
           - Sim, as árvores nem sempre ficam de pé, elas são a outra memória da indiferença dos homens, resistem ao silêncio e às catástrofes – completou o Daniel.

Aos poucos o texto ia ganhando forma, os cenários imaginados e as personagens cresciam, adquiriam vida própria, éramos apenas a voz num corpo emprestado. A Árvore assumia o protagonismo, representava a natureza e o que de melhor ela significa para o Homem. Vivemos um tempo difícil, em que a sobrevivência da nossa espécie depende daquilo que fizermos pelo ambiente e gestão dos recursos. Por isso, a Árvore é a voz da floresta, um grito, um alerta, um convite à inteligência. Mas pode ser, também, uma outra maneira de dizermos que há pessoas como a Leonor que gostariam de não ficar paradas.

            - Acho que a cena deve começar sem luz, enquanto se ouve uma voz:
Numa cidade imaginária a pressa não deixa as pessoas viverem. Há muito a fazer e o sol deixa marcas de melancolia.”

            - E lentamente o foco vai iluminando uma cadeira de rodas, o som é de carros e pessoas à hora de ponta de uma grande cidade – continuou o Santiago.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

IX


Na mesma direção vimos chegar o Daniel. Mal nos viu apressou o passo e desapareceu sob a copa das árvores. A mãe da Bruna chamou-nos para a mesa, agora estávamos todos, já a Alma estava na sala com um olho aberto e outro fechado, verde e reluzente. Ao aproximarmo-nos ficou de barriga para o ar à espera de mimos. Sentei-me ao lado do Santiago, para continuarmos a conversa que tínhamos iniciado na varanda.

            - Sabes, estive a pensar no título da peça e acho-o um pouco longo – disse o Santiago.
Fomos interrompidos pela anfitriã com leite quente.

            - Talvez tenhas razão, mas o mais importante é que se diga bem, que possa dançar o Lago dos Cisnes e que não atrapalhe a língua no céu-da-boca.

           - Como é isso de atrapalhar a língua?

           - É como dizer que amamos alguém. Por exemplo: És a luz de um sol que nasce quando sorris. Entendeste?

           - Então, um título pode ser uma metáfora – concluiu o Santiago.

Às vezes, deitava um olhar a Bruna, que se encontrava na outra ponta da mesa. Aos poucos as conversas misturavam-se, o Daniel defendia que a peça devia ser uma oportunidade para alguma crítica social. Mas era importante não esquecer que pretendíamos surpreender a nossa amiga Leonor – e não havia muito tempo.

          - Podemos ficar aqui a trabalhar ou vamos para o meu quarto – sugeriu a Bruna.
Quase a terminar o lanche, o pai veio desejar-nos bom trabalho com a Alma ao colo e voltou para a sua leitura.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

VIII


Daqui a pouco estarei ao seu lado, tentando ler nos seus comportamentos um fio de luz, um sinal que suspenda a respiração e incite a atravessar o muro da timidez. “O que queres ser?” – ainda a pergunta da menina Alice. Agora quero ser capaz de subir as escadas, de ouvir a voz da Bruna no 2º andar, de olhá-la nos olhos, de lhe beijar a face, sem tremer, de guardar as mãos nos bolsos ou, ainda, de soltar uma gargalhada lembrando as anedotas que ouvi no autocarro. 

A ansiedade é invalidante quando não nos deixa ser como imaginamos, na nossa cabeça as abelhas criam vespeiros e não nos deixam aproximar do que somos. E somos tanta coisa ao longo da vida, por isso é tão difícil responder à pergunta “o que queres ser?”. Desde pequenos que nos indicam caminhos feitos pelos outros, muitas vezes inacessíveis a antepassados, mas perseguidos. Somos a esperança que ilumina o passado de quem não teve futuro, somos o futuro do passado de quem quis ter presente. E neste desencontro de representações ganhamos protagonismo antes de sermos alguma coisa, antes de termos idade.

            - Entra, entra. Já só falta o Daniel – diz a Bruna.
Era hora do lanche. Na mesa da sala de jantar a mãe continuava a colocar pão, manteiga, queijo, compotas, leite e chocolates.

- Logo que o Daniel chegar, vamos para a mesa.
Ao fundo, num espaço mais íntimo, está o pai a ler o jornal, descalço e aos seus pés a gata Alma, cinzenta e de olhos verdes. Era uma sem-abrigo que foi acolhida ainda bebé. Na varanda do 2º andar via-se o coreto da praça, cercado de plátanos com novas folhas que acolhiam a passarada para a pernoita.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

VII

Deixei que entrassem e depois fui sentar-me nas últimas cadeiras. Ao longo da pequena viagem até ao quarteirão, onde mora a Bruna, ainda tive tempo de ouvir a menina Alice contar algumas anedotas e meter-se comigo.
            - O menino tem idade para ser meu neto. Quer dar-me uma ajuda a descer?
Imediatamente peguei num dos sacos.
            - Obrigado, menino.

Muitos dos passageiros desciam naquela paragem. Enquanto aguardávamos na fila, a menina Alice perguntou-me:
            - O que queres ser?

Pensava na resposta quando chegou a vez da menina Alice sair e despediu-se:
- Obrigado.

Lesto - e ainda a pensar na pergunta “O que queres ser?” -, iniciei a caminhada até à casa da Bruna. Era sábado à tarde, havia muitas famílias a passearem os filhos nos espaços verdes. Outros grupos encaminhavam-se ruidosamente para o futebol entoando cantos. Há muito que não ia ao futebol. Apesar de gostar de Ronaldo, o sedutor da bola, admiro o jogo coletivo, a sua capacidade de nos fazer sonhar. Com Figo e Ronaldo aprendi que o jogo e a beleza vivem no gume da emoção. 

Há sempre mais sonho para além do horizonte onde acreditamos existirem novas causas, mesmo as que mudaram a História. Foge-me o pensamento, a Bruna está em todo o lado, é a inquietação em todos os meus passos, uma presença inevitável. Quando não sabemos nada dos outros, é mais fácil falarmos de nós, na esperança de que seja possível ler os lábios no silêncio.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

VI


Olhei os seus dedos finos, delicados como tesouros. O frasco de boca larga ampliou a beleza da pele branca. Vi nela um delta de veias que desaguou no meu coração – como foi inquietante! Quando se sentou no chão, não podia imaginar que, naquela tarde, tudo mudou no meu olhar. O que era incolor deixou passar a luz, o que era invisível transformou-se na porta das insónias. 

Escrever a peça de teatro ganhou outros sentidos. A Bruna passou a ser a flor que eu não tinha. E tinha muitas. Cuidava delas todos os dias antes do sol desaparecer no horizonte. Sempre gostei de flores e de paisagens. O problema é que apenas eu via flores nesses lugares. Às vezes, descia a rua, para apanhar o autocarro, em frente à paragem havia um canteiro com uma palmeira ao centro. Na Primavera era possível sentir o cheiro, principalmente, ao fim da tarde. 

Enquanto esperava, as pessoas faziam conversa de circunstância, iam falando do tempo, das doenças e dos filhos; apesar da paragem ter um banco para três pessoas, muitas velhinhas preferiam sentar-se no muro branco de barra azul. Em dias de sol preferem sempre a sombra da palmeira. Quando o autocarro se aproxima rapidamente agarram os sacos e encaminham-se para a porta sem perder o fio da conversa. 

É uma espécie de tertúlia de bairro com hora combinada. Ali na rua todos se conhecem pelo nome. A menina Alice, é assim que lhe chamam, é a mais rija, está reformada e costuma ir visitar a irmã que mora no outro lado do rio. Leva laranjas e maçãs da sua horta e um galo com as patas atadas. 




sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

V

- Um passado de silêncios e de sonhos adiados. Talvez tivéssemos querido o mesmo em algum momento, nas minhas mãos permanecia o mistério das sombras, a esperança do seu olhar no recreio.

Aos poucos a história de A árvore que não quer ficar parada crescia, um fio dramático vivia na orla da esperança, no movimento aparente das margens que levam o rio. Todos éramos esse rio levados pela ideia de surpreender a Leonor com as vozes de todos nós. Apesar dos dias serem de Verão, a noite chegava num ápice.
 - Amanhã regressamos – dizíamos.

A motivação e as frases que podiam mudar o mundo, os pensamentos sérios e as vírgulas que esculpiam uma narrativa imprevisível acompanhavam-me no regresso a casa. À minha espera estava o Salsa, uma bola de pêlo roedora, que me surpreendia mal punha a chave na porta. Enroscava-se nas minhas pernas e exigia colo. Durante alguns minutos tentava acalmá-lo, era um ritual que acabava no sofá. 

Acompanhava todos os movimentos com os olhos, esperava que caísse alguma migalha da mesa para dar um salto voador. Quando isso acontecia já não saía do lugar. Depois do jantar ia até ao quintal, sempre na companhia do Salsa. A noite estava quente e ouviam-se grilos, o céu estava estrelado e, às vezes, era possível ver algumas estrelas cadentes. A ideia de surpreender a Leonor tornou-se uma obsessão.

A peça tomava conta de nós, despertou-nos para a botânica dos afetos e o pergaminho das letras. Cada reencontro trazia a cumplicidade que não morre, as nossas vidas faziam mais sentido. E como em qualquer começo, tudo parece frágil e fragmentado, risca-se e reescreve-se, volta-se atrás, escuta-se a melodia que embala a mão, escutamos as vozes que nos ditam o estuário da manhã luminosa da escrita que não pode esperar.