sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

VIII


Daqui a pouco estarei ao seu lado, tentando ler nos seus comportamentos um fio de luz, um sinal que suspenda a respiração e incite a atravessar o muro da timidez. “O que queres ser?” – ainda a pergunta da menina Alice. Agora quero ser capaz de subir as escadas, de ouvir a voz da Bruna no 2º andar, de olhá-la nos olhos, de lhe beijar a face, sem tremer, de guardar as mãos nos bolsos ou, ainda, de soltar uma gargalhada lembrando as anedotas que ouvi no autocarro. 

A ansiedade é invalidante quando não nos deixa ser como imaginamos, na nossa cabeça as abelhas criam vespeiros e não nos deixam aproximar do que somos. E somos tanta coisa ao longo da vida, por isso é tão difícil responder à pergunta “o que queres ser?”. Desde pequenos que nos indicam caminhos feitos pelos outros, muitas vezes inacessíveis a antepassados, mas perseguidos. Somos a esperança que ilumina o passado de quem não teve futuro, somos o futuro do passado de quem quis ter presente. E neste desencontro de representações ganhamos protagonismo antes de sermos alguma coisa, antes de termos idade.

            - Entra, entra. Já só falta o Daniel – diz a Bruna.
Era hora do lanche. Na mesa da sala de jantar a mãe continuava a colocar pão, manteiga, queijo, compotas, leite e chocolates.

- Logo que o Daniel chegar, vamos para a mesa.
Ao fundo, num espaço mais íntimo, está o pai a ler o jornal, descalço e aos seus pés a gata Alma, cinzenta e de olhos verdes. Era uma sem-abrigo que foi acolhida ainda bebé. Na varanda do 2º andar via-se o coreto da praça, cercado de plátanos com novas folhas que acolhiam a passarada para a pernoita.

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