sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

X


Decidimos trabalhar no quarto, sentados no chão, ao redor da cama, onde retomámos a leitura do texto da sessão anterior, na fala da Árvore.

            - Essa ideia de pôr a árvore a falar é muito interessante – disse o Daniel. Acho mesmo que uma árvore tem muito a dizer.
            - Pelo menos a nossa – retorquiu a Bruna.
           - Sim, as árvores nem sempre ficam de pé, elas são a outra memória da indiferença dos homens, resistem ao silêncio e às catástrofes – completou o Daniel.

Aos poucos o texto ia ganhando forma, os cenários imaginados e as personagens cresciam, adquiriam vida própria, éramos apenas a voz num corpo emprestado. A Árvore assumia o protagonismo, representava a natureza e o que de melhor ela significa para o Homem. Vivemos um tempo difícil, em que a sobrevivência da nossa espécie depende daquilo que fizermos pelo ambiente e gestão dos recursos. Por isso, a Árvore é a voz da floresta, um grito, um alerta, um convite à inteligência. Mas pode ser, também, uma outra maneira de dizermos que há pessoas como a Leonor que gostariam de não ficar paradas.

            - Acho que a cena deve começar sem luz, enquanto se ouve uma voz:
Numa cidade imaginária a pressa não deixa as pessoas viverem. Há muito a fazer e o sol deixa marcas de melancolia.”

            - E lentamente o foco vai iluminando uma cadeira de rodas, o som é de carros e pessoas à hora de ponta de uma grande cidade – continuou o Santiago.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

IX


Na mesma direção vimos chegar o Daniel. Mal nos viu apressou o passo e desapareceu sob a copa das árvores. A mãe da Bruna chamou-nos para a mesa, agora estávamos todos, já a Alma estava na sala com um olho aberto e outro fechado, verde e reluzente. Ao aproximarmo-nos ficou de barriga para o ar à espera de mimos. Sentei-me ao lado do Santiago, para continuarmos a conversa que tínhamos iniciado na varanda.

            - Sabes, estive a pensar no título da peça e acho-o um pouco longo – disse o Santiago.
Fomos interrompidos pela anfitriã com leite quente.

            - Talvez tenhas razão, mas o mais importante é que se diga bem, que possa dançar o Lago dos Cisnes e que não atrapalhe a língua no céu-da-boca.

           - Como é isso de atrapalhar a língua?

           - É como dizer que amamos alguém. Por exemplo: És a luz de um sol que nasce quando sorris. Entendeste?

           - Então, um título pode ser uma metáfora – concluiu o Santiago.

Às vezes, deitava um olhar a Bruna, que se encontrava na outra ponta da mesa. Aos poucos as conversas misturavam-se, o Daniel defendia que a peça devia ser uma oportunidade para alguma crítica social. Mas era importante não esquecer que pretendíamos surpreender a nossa amiga Leonor – e não havia muito tempo.

          - Podemos ficar aqui a trabalhar ou vamos para o meu quarto – sugeriu a Bruna.
Quase a terminar o lanche, o pai veio desejar-nos bom trabalho com a Alma ao colo e voltou para a sua leitura.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

VIII


Daqui a pouco estarei ao seu lado, tentando ler nos seus comportamentos um fio de luz, um sinal que suspenda a respiração e incite a atravessar o muro da timidez. “O que queres ser?” – ainda a pergunta da menina Alice. Agora quero ser capaz de subir as escadas, de ouvir a voz da Bruna no 2º andar, de olhá-la nos olhos, de lhe beijar a face, sem tremer, de guardar as mãos nos bolsos ou, ainda, de soltar uma gargalhada lembrando as anedotas que ouvi no autocarro. 

A ansiedade é invalidante quando não nos deixa ser como imaginamos, na nossa cabeça as abelhas criam vespeiros e não nos deixam aproximar do que somos. E somos tanta coisa ao longo da vida, por isso é tão difícil responder à pergunta “o que queres ser?”. Desde pequenos que nos indicam caminhos feitos pelos outros, muitas vezes inacessíveis a antepassados, mas perseguidos. Somos a esperança que ilumina o passado de quem não teve futuro, somos o futuro do passado de quem quis ter presente. E neste desencontro de representações ganhamos protagonismo antes de sermos alguma coisa, antes de termos idade.

            - Entra, entra. Já só falta o Daniel – diz a Bruna.
Era hora do lanche. Na mesa da sala de jantar a mãe continuava a colocar pão, manteiga, queijo, compotas, leite e chocolates.

- Logo que o Daniel chegar, vamos para a mesa.
Ao fundo, num espaço mais íntimo, está o pai a ler o jornal, descalço e aos seus pés a gata Alma, cinzenta e de olhos verdes. Era uma sem-abrigo que foi acolhida ainda bebé. Na varanda do 2º andar via-se o coreto da praça, cercado de plátanos com novas folhas que acolhiam a passarada para a pernoita.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

VII

Deixei que entrassem e depois fui sentar-me nas últimas cadeiras. Ao longo da pequena viagem até ao quarteirão, onde mora a Bruna, ainda tive tempo de ouvir a menina Alice contar algumas anedotas e meter-se comigo.
            - O menino tem idade para ser meu neto. Quer dar-me uma ajuda a descer?
Imediatamente peguei num dos sacos.
            - Obrigado, menino.

Muitos dos passageiros desciam naquela paragem. Enquanto aguardávamos na fila, a menina Alice perguntou-me:
            - O que queres ser?

Pensava na resposta quando chegou a vez da menina Alice sair e despediu-se:
- Obrigado.

Lesto - e ainda a pensar na pergunta “O que queres ser?” -, iniciei a caminhada até à casa da Bruna. Era sábado à tarde, havia muitas famílias a passearem os filhos nos espaços verdes. Outros grupos encaminhavam-se ruidosamente para o futebol entoando cantos. Há muito que não ia ao futebol. Apesar de gostar de Ronaldo, o sedutor da bola, admiro o jogo coletivo, a sua capacidade de nos fazer sonhar. Com Figo e Ronaldo aprendi que o jogo e a beleza vivem no gume da emoção. 

Há sempre mais sonho para além do horizonte onde acreditamos existirem novas causas, mesmo as que mudaram a História. Foge-me o pensamento, a Bruna está em todo o lado, é a inquietação em todos os meus passos, uma presença inevitável. Quando não sabemos nada dos outros, é mais fácil falarmos de nós, na esperança de que seja possível ler os lábios no silêncio.